4 de abril de 2013

"O FIM DO CONHECIMENTO"

Copiei este texto integralmente de uma matéria publicada na revista Info em maio de 2010, enviada por meu querido amigo e companheiro de trabalho Juarez Argolo, gerente de operações do Projeto Resgate na TV Globo. Juarez está permanentemente estudando novas formas de recuperar e armazenar o acervo da TV, e eu tenho o prazer de acompanhar de perto parte deste trabalho. Achei a matéria muito pertinente e quis compartilhar esta questão tão importante para a fotografia. Esta matéria ajuda a exemplificar como o álbum que entregamos aos clientes é tão importante, muito mais que uma mídia digital que poderá ser perdida ao longo do tempo. Nossos meios de armazenamento digitais são instáveis e possuem vida curta, por isso tento frisar a importância dos álbuns e de tudo que eles representam historicamente. Álbuns e livros fotográficos  são referências emocionais e históricas dentro de uma família, são referências de comportamento, de vestimentas, de cultura de um povo, de tantos assuntos relevantes para tantas áreas de conhecimento. Vida longa aos álbuns de papel!

O FIM DO CONHECIMENTO
Armazenamos nossos dados em formatos digitais cada vez mais frágeis e efêmeros. Se a energia acabar, podemos perder grande parte deles. (TOM SIMONITE E MICHAEL LE PAGE. DA NEW SCIENTIST)

No 15º dia do mês XI, Vênus desapareceu no oeste, e por três dias ficou longe no céu. No 18º dia do mês XI, Vênus tornou- se visível no leste.” O que é notável sobre estas observações de Vênus é que elas foram feitas cerca de 3 500 anos atrás, por astrólogos da Babilônia. Nós as conhecemos porque uma tábua de argila com essas observações, conhecida como a Tábua de Vênus de Ammisaduqa, foi feita 1 000 anos mais tarde e sobreviveu desde então praticamente intacta. Hoje, ela pode ser vista no Museu Britânico, em Londres.

Nós, é claro, temos conhecimentos jamais sonhados pelos babilônios. Não nos limitamos a observar Vênus de longe, enviamos naves até lá. Nossos astrônomos agora observam planetas que orbitam sóis alienígenas e desafiam limites do tempo e do espaço, voltando até mesmo ao início do próprio universo. Nossos industriais estão transformando areia e óleo em máquinas cada vez menores e mais sofisticadas, uma forma de alquimia mais maravilhosa do que qualquer alquimista jamais sonhou. Nossos biólogos estão experimentando com receitas para a própria vida, ganhando poderes antes atribuídos somente aos deuses. No entanto, à medida que adquirimos conhecimentos cada vez mais extraordinários, também os armazenamos em formas cada vez mais frágeis e efêmeras. Se nossa civilização se encontrasse em apuros, como todas as outras que vieram antes, quanto disso tudo iria sobreviver? Evidentemente, se deparássemos com uma catástrofe que acabasse com todos os seres humanos, como um gigantesco asteroide, isso seria irrelevante. Mesmo se outra espécie inteligente evoluísse na Terra, quase todos os outros traços da humanidade teriam desaparecido há muito tempo.

Vamos supor, no entanto, um evento menos cataclísmico, em que muitos edifícios permanecessem intactos e um número suficiente de pessoas sobrevivesse para reconstruir a civilização depois de algumas décadas ou séculos. Suponha, por exemplo, que o sistema financeiro global desmorone, ou um novo vírus mate a maioria da população do mundo, ou uma tempestade solar destrua a rede de energia da América do Norte. Ou suponha que haja um declínio lento decorrente de um aumento brusco nos custos de energia, agravado por desastres ambientais. A crescente complexidade e interdependência das sociedades está tornando as civilizações cada vez mais vulneráveis a tais eventos.

Ingrediente Secreto
Seja qual for a causa, se a energia dos computadores que armazenam a maior parte do conhecimento da humanidade hoje fosse cortada, e se as pessoas parassem de cuidar deles e dos edifícios em que eles estão abrigados, e se as fábricas deixassem de produzir novos chips e discos, por quanto tempo todo o nosso conhecimento sobreviveria? Quanta informação os sobreviventes de um desastre como esse seriam capazes de recuperar, décadas ou séculos depois? Mesmo na ausência de qualquer catástrofe, a perda de conhecimento já é um problema. Estamos gerando mais informações do que nunca, e armazenando-as em meios cada vez mais transitórios. Muito do que está sendo perdido não chega a ser essencial — as gerações futuras provavelmente vão sobreviver sem as fotos e vídeos que você perdeu quando seu disco rígido morreu —, mas uma parte é. Em 2008, por exemplo, verificou-se que os Estados Unidos tinham “esquecido” como fazer um ingrediente secreto das ogivas nucleares chamadas Fogbank. Registros adequados não haviam sido mantidos e todo o pessoal chave se aposentou ou deixou a agência responsável. O fiasco acabou acrescentando 69 milhões de dólares ao custo do programa de renovação da ogiva.

Se ficarmos sem energia por um período prolongado, o legado da humanidade dependerá em grande parte do disco rígido, a tecnologia que funciona como memória funcional de nossa sociedade. Tudo está nos discos rígidos, em geral localizados em salas cheias de servidores conhecidas como data centers. Os discos rígidos nunca foram destinados ao armazenamento de longo prazo, portanto não são submetidos aos testes usados para estimar a vida útil de formatos como o CD. Ninguém tem certeza de quanto tempo eles vão durar. Kevin Murrell, do museu nacional da computação, no Reino Unido, ligou recentemente um disco rígido de 456 megabytes que tinha sido desativado desde o início de 1980. “Não tivemos nenhum problema para extrair os dados dele”, diz.
Os discos modernos podem não se sair tão bem, no entanto. A densidade de armazenamento em discos rígidos hoje é de mais de 200 gigabits por polegada quadrada, e continua subindo rápido. Embora hoje os discos tenham sistemas sofisticados para compensar falhas em pequenos setores, em geral quanto mais dados você armazena num material, mais você perde quando partes dele são degradadas ou danificadas. “Os discos modernos ainda estão em julgamento. Só saberemos daqui a 20 anos”, diz Murrell.

A maioria dos dados importantes é salva como backup em formatos como fitas magnéticas ou discos ópticos. Infelizmente, muitos desses formatos não duram nem cinco anos, diz Joe Iraci, que estuda a confiabilidade da mídia digital no Canadian Conservation Institute, em Ottawa, Ontário. Os testes de “envelhecimento acelerado” de Iraci, que normalmente envolvem a exposição da mídia a calor e alta umidade, mostram que a mídia mais estável é o CD gravável com uma camada reflexiva de ouro e uma camada de tintura ftalocianina. “Se você usar esse disco e gravá-lo bem, acho que poderia durar mais de 100 anos”, diz ele. “Se optar por outra mídia, provavelmente está olhando para uma janela de cinco a dez anos.”

O drives de memória flash, que são cada vez mais comuns, são ainda menos resistentes que os discos rígidos. Não está claro por quanto tempo eles preservam os dados, mas um fabricante adverte os usuários a não confiar neles para mais de dez anos. E, embora algumas tecnologias de memória possam ser mais estáveis que a memória flash, o foco está no aumento da velocidade e da capacidade, e não na estabilidade.

Naturalmente, as condições em que a mídia é armazenada podem ser muito mais importantes do que sua estabilidade inerente: unidades guardadas em locais secos e frescos vão durar muito mais que aquelas expostas ao calor e à umidade. No entanto, poucos data centers são projetados para manter essas condições por muito tempo se a energia for cortada.

Fitas com lagarto 
A sobrevivência física dos dados, no entanto, é apenas o início da saga para recuperá-los, como os entusiastas da exploração espacial Dennis Wingo e Cowing Keith descobriram. Eles lideram um projeto baseado no Ames Research Center da NASA, em Moffett Field, Califórnia, para obter imagens de alta resolução de antigas fitas magnéticas. As fitas contêm dados brutos enviados para a Terra pelas cinco missões Lunar Orbiter em 1960. Na época, apenas imagens de baixa resolução podiam ser retiradas. As fitas foram embaladas em plástico, colocadas em caixas metálicas magneticamente impermeáveis e permanecem em bom estado. Mas, para obter os dados brutos, a equipe teve de recuperar antigos drives de fita guardados por um ex-funcionário da NASA. Esse foi o maior desafio, diz Cowing. “Havia um lagarto vivendo dentro de um deles.” Depois de recuperar os dados brutos, só foi possível convertê-los a uma forma utilizável após uma busca de três meses para descobrir um documento com as equações de “demodulação”.

Se hoje é preciso um grupo de entusiastas com recursos financeiros abundantes e muitos meses para recuperar os dados de algumas fitas magnéticas bem preservadas, imaginem as dificuldades que os sobreviventes do pós-catástrofe enfrentariam. Muitos dados hoje em dia são criptografados ou legíveis apenas usando um software especial. E num data center que ficasse intocado por 20 ou 30 anos, alguns drives teriam de ser desmontados para recuperar seus dados, diz Robert Winter, engenheiro sênior da Kroll Ontrack Data Recovery em Epsom, Surrey, Reino Unido, que em 2003 resgatou os dados em um disco rígido do ônibus espacial Columbia.

No pós-catástrofe, a falta de recursos — de pessoas, competências, equipamentos — pode ser um obstáculo muito maior do que a perda física de dados. Mas será que a perda da maior parte dos dados armazenados em discos rígidos realmente importa? Afinal, muito do que herdamos de civilizações do passado é de pouca utilidade prática: a Tábua de Vênus de Ammisaduqa, por exemplo, em grande parte contém apenas bobagens astrológicas. Da mesma forma, uma considerável parcela do que enche os servidores hoje também parece dispensável.

Mesmo o valor de muitos dados científicos é questionável. De que adiantaria conhecer a sequência do genoma de humanos e outros organismos, por exemplo, sem a tecnologia e as habilidades necessárias para explorar esse conhecimento? Com alguns experimentos científicos atuais gerando petabytes de dados, preservar tudo já está se tornando um grande desafio. A vasta quantidade de material será um problema para qualquer um que tente recuperar o que eles têm de importante: embora seja fácil encontrar um livro numa biblioteca, não há como ter certeza do que está num disco rígido sem navegar por ele.

Além do mais, aquilo que sobrevive por mais tempo não é necessariamente o mais importante. Quanto mais cópias há de um conjunto de dados, maiores as suas chances de sobrevivência, descoberta e recuperação. Alguns dados são muito copiados porque são úteis, como sistemas operacionais, mas na maioria das vezes o critério é a popularidade. Isso significa que as versões digitais de músicas populares podem sobreviver muitas décadas: ou seja, o Abba pode chegar ao topo das paradas de sucesso no século 22, novamente. No entanto, há muito menos cópias de livros e manuais e plantas contendo o conhecimento especializado que pode ser mais importante para quem estiver tentando reconstruir a civilização, como técnicas para manipular o ferro ou produzir antibióticos.

Talvez a perda mais importante ocorra depois de meio século, quando engenheiros, cientistas e médicos sobreviventes começarem a sucumbir à velhice. Suas competências e conhecimentos fariam toda a diferença na hora de encontrar informações importantes e colocar máquinas-chave para trabalhar novamente. As fitas da NASA, por exemplo, foram restauradas com a ajuda de um engenheiro aposentado que trabalhara em sistemas semelhantes.

A força do papel 
Um século depois de uma grande catástrofe, pouco da era digital sobreviveria além do que está escrito em papel. “Mesmo o pior tipo de papel pode durar mais de 100 anos”, diz Season Tse, que trabalha com conservação de papel no Canadian Conservation Institute. O mais antigo livro em papel data do ano 868 d.C., diz ele. O item foi encontrado numa caverna no noroeste da China, em 1907. Desde que os livros não sejam utilizados como combustível, ou como papel higiênico, eles vão durar centenas de anos, frágeis e desbotados, mas legíveis. Novamente, porém, os volumes mais populares têm mais chances de sobreviver. Imagine arriscar sua vida explorando ruínas perigosas em busca de sabedoria antiga só para encontrar uma pilha de revistas Playboy escondidas há muito tempo.

Não é só o que sobrevive, mas as escolhas daqueles que virão depois que, em última instância, decidem qual será o legado de uma civilização. E aqueles que decidem são mais propensos a escolher o útil do que o trivial. Assim, a maioria dos nossos conhecimentos científicos e tecnológicos pode ser redescoberta e reinventada, mais cedo ou mais tarde. Caso contrário, os maiores legados da nossa época podem ser best-sellers como Citações do Presidente Mao e O Senhor dos Anéis.

FONTE: REVISTA INFO (MAIO 2010)





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